Carlos Damião

16 de março de 2007

FORTUNA CRÍTICA 2

Breve história da
moderna poesia catarinense


Tânia Regina Oliveira Ramos
Especial para o Anexo

Fazer história da literatura recente nos põe face a face com alguns dos maiores dilemas da atividade crítica. Digo isso partindo da minha própria prática. Estou ministrando uma disciplina no curso de pós-graduação em literatura intitulada Narrativas Brasileiras Contemporaníssimas. Nela, meus alunos e eu ratificamos na prática de que não temos ainda perspectiva nem distância suficientes para emitir juízos objetivos. Eis aí o argumento mais comum entre os que apontam para o caráter provisório dos discursos ocupados em avaliar a cena contemporânea.
Abordar a contemporaneidade da produção literária, mais especificamente dos textos poéticos, significa, mais do que tudo, tentar identificar os sinais de diferença. Os anos 80 já começam a pertencer a um passado relativamente longínquo e, no entanto, parece difícil desenhar seu perfil literário. Em comparação aos mais longínquos anos 70 (ainda parecendo que foi ontem...), os poetas vieram revestidos pela marca de uma geração marginal, que escreveu diferente de seus sucessores imediatos, sejam os vanguardistas ou os modernistas tardios.
Tomo como ponto de partida para falar da poesia hoje em Santa Catarina o texto de Zahidé Muzart: "Poesia em Florianópolis ­ Os Novíssimos", apresentado no curso sobre a história sócio-cultural de Florianópolis, realizado nos meses de abril a junho de 1990 e publicado pela Editora Lunardelli em 1991. Depois de citar as grandes vozes do passado como Júlia da Costa, Cruz e Sousa, Luís Delfino, Ernani Rosas, ela pára nos anos 80 e em um grupo de Florianópolis que não se agrupou, mas mostrou o seu potencial. Diz-nos Zahidé: "Diferente do Grupo Sul, que agiu solidariamente, visando a uma mudança da própria sociedade, os novíssimos, se têm tal preocupação, guardam-na para si próprios. E agem solitariamente, acreditando que uma mudança da sociedade se fará muito mais a partir do trabalho individual competente e trabalham para isso."
Cabe-nos aqui avaliar que muitos dos poetas anunciados por Zahidé continuam a mostrar o seu potencial, ainda que muitos deles tenham dado outros rumos a suas vidas, nada muito fora do espaço literário. Coincidentemente em presença, os poetas novíssimos aglutinaram-se em torno de Fábio Brüggemann, de seu Sebo de Qualidade e da Editora Semprelo. Cito alguns deles: Mauro Faccioni Filho, Raul Arruda, Aldy Maingué, Mauro Pommer, Chandal Nasser, entre tantos outros. O que eu confirmo na leitura de Zahidé é que o começar diferente dos anos 80 deu-se tanto na tarefa das condições de produção e circulação do poema quanto na configuração de novas escritas, de novos universos e estratégias de linguagem. Os sem-prelo poderiam se valer um dia das letras contemporâneas.
Para falar da poesia hoje, vou me deter sobremaneira nas publicações da Ipsis Litteris, coleção da Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Com Salim Miguel e depois Alcides Buss na direção da Edufsc, a literatura sempre recebeu a atenção merecida. Some-se a isto a presença de pessoas comprometidas com a área no conselho editorial. Nos anos 90 não foram poucas as publicações de textos poéticos pela Edufsc. Poderiam ser mais, pois nunca se fechou as portas para bons poetas, ainda que inéditos. Aliás, lançar poetas de Santa Catarina tem sido uma das políticas da coleção Ipsis Litteris.
Uma série institucional ou editorial permite-nos ressituar o livro de poesia como produto de um mercado cultural estruturado. Trabalho especialmente com narrativas. Sou leitora de poesia e durante quatro anos li regularmente poesias, assim quase na gênese como membro do conselho editorial. O rigor de minhas análises, especialmente com aqueles que não me transmitiam as suas experiências de leitura, permitem-me hoje a certeza de que há mérito naqueles que foram publicados: desde o jovem Valdemir Klamt até a experiência de Hugo Mund Jr., passando por Chandal Meirelles, Carlos Damião, Irineu Voigtlaender, Inês Mafra, Dennis Radünz, Marcelo Steil, Miriam Portela, Renato Tapado, Regina Carvalho, Alckmar Luiz dos Santos, Heron Moura, entre outros. Nestes textos se encontram linguagens radicalmente céticas, estratégias minimalistas e a retomada do imaginário de uma linhagem modernista.
A leitura de uma centena de originais permitiram-me concluir que o que mais importa ao sujeito da poesia na relação com o mundo não é somente a óbvia questão da memória. O que importa mesmo é que a palavra lhe dá as condições de percepção, compreensão e aceitação de uma ordem que se quer universal. Chego a pensar, quando leio um bom livro de poema, ainda que modesto, que há uma ordem no mundo, onde tudo é de uma perfeição quase insuportável. À poesia, correlata fiel dessa mesma ordem, cabe sua reconstituição.
Reconheci também em todos os poetas lidos nesta década, seja em concursos literários, seja enquanto candidatos à publicação ou novos poetas publicados entre aqueles republicados, o tributo a um certo discurso místico cristão e a sua inserção numa tradição da poesia do cotidiano. Em alguns versos concisos e intensos, a contenção emotiva, a acuidade formal, a paixão das coisas simples, o diálogo com os poetas clássicos, o humor, a ironia, o erotismo, a intertextualidade, passando em alguns deles, não muitos, pela preocupação com os acentos locais. Desse modo, antenados com as tendências sempre abrangentes da linguagem poética, há nas manifestações aqui publicadas aquilo que vem a ser um traço da poesia moderna: a informalidade e o prosaísmo assumindo o seu lugar de discurso original, revelando um mundo onde as coisas parecem obedecer a dois movimentos complementares: o do próprio fazer poético e o da subjetividade. Ilustro esta característica especialmente com o poeta Alcides Buss, dono de uma vasta obra onde se percebe um percurso trabalhoso, não apenas biográfico, mas também cultural e literário.
Embora esteja centrando o meu olhar sobre os textos que me falaram mais de perto, não quero deixar de mencionar que o quadro catarinense contemporâneo confirma, sim, um panorama de variedade harmoniosa, inclusive no que se refere ao mercado editorial. Os concursos literários, as recentes publicações da Editora Athanor e de outras editoras catarinenses, os saraus e recitais que marcaram a década, ora em miniauditórios universitários, em bares da cidade, que precisam ser recuperados, são referências que merecem ser citadas.
Não posso deixar de citar as belíssimas publicações de Rodrigo de Haro e de Leonor Scliar Cabral. Falo especialmente de "Ministério de Santa Catarina" e "Memórias de Safarad". De Leonor ainda não se pode deixar de mencionar os poemas eróticos reunidos na edição bilíngüe da "De Senectude Erotica". Devo mencionar, publicados por diferentes editoras locais em caprichadas publicações, Dinovaldo Gilioli, Pedro Port, Iaponan Soares, Péricles Prade, Artêmio Zanon, Fábio Brüggemann, Hoyedo Lins, C. Ronald e as sempre encantatórias reedições de Lindolf Bell.
Neste espaço, a baliza do contato com os textos poéticos está na imperturbável resistência do fazer poético, não por poetas de alta qualidade que continuam a surgir em todos os lugares, ainda que em número previsivelmente reduzido ­ mas também porque a legião dos demais, aqueles que não sabem fazer poesia, desaparecem no instante mesmo em que estes, como citei, aparecem, mantendo assim a vitalidade das literaturas.
Reconhecendo um número significativo de publicações, posso, no entanto, dizer que em linhas gerais este não é um daqueles momentos em que a poesia se encontra no centro da referência da literatura. As transformações de nosso tempo rejeitaram a poesia para a periferia cultural, o que repercute sobre o vigor criativo do gênero, seja pelo inevitável impulso de renovação, quase sempre impotente, seja pelo esgotamento da temática. Tudo isso, muitas vezes, tira-lhe a vitalidade espontânea. Como membro de conselhos editoriais, constato que a maioria dos candidatos a poetas entregam-se ao autobiografismo narcísico ou à repetição dos lugares-comuns que, justamente, os desqualificam. Mesmo enfocando este espaço ocupado por frágeis candidatos a poetas, valho-me de Wilson Martins para dizer que só pode haver grande literatura onde floresce a subliteratura (sem dar a esta palavra apenas a conotação pejorativa), caldo da cultura de que a outra necessita. Pela lei dos grandes números, os escritores sem valor propiciam o aparecimento dos outros, assim como são as obras frustradas ou imperfeitas que dão aos maiores a idéia das obras-primas.
Digo mais: é o poema e não a poesia que se faz com palavras. Para que haja poesia é preciso que entendamos a metáfora poética. Para ilustrar, quero mencionar a iniciativa de uma revista de estudos sobre poesia chamada "Morcego Cego", publicação do Museu/Arquivo da Poesia Manuscrita. Na comissão editorial estão Zahidé Luppinacci Muzart, Iaponan Soares, Walter Carlos Costa, Alckmar Luz dos Santos e Miguel Sanches Neto, nomes que por si já explicitam o lugar da qualidade. Estes nomes e todos os outros que fazem parte das publicações bastariam para dizer que a poesia precisa, acima de bons leitores, bons editores (e aqui faço uma referência especial a Kleber Teixeira e a sua "Noa-Noa") e de excelentes críticos. Iniciativas como esta é que fazem uma boa produção ser lida.
Nesse ponto, quero me valer do que aprendi com o poeta da modernidade, Baudelaire: cabe ao ouvinte e ao leitor a, conforme a ocasião, atribuir um sentido à obra de arte, sabendo no entanto que nenhum véu escolar, nenhum paradoxo universitário, nenhuma utopia pedagógica poderão auxiliar-nos neste empreendimento, já que há nas produções poéticas algo de sempre novo, que escapará eternamente da regra e das análises de escola. Para Baudelaire, a crítica, para ter a sua razão de ser, deve ser parcial, apaixonada, política, isto é, feita de um ponto de vista exclusivo, mas do ponto de vista que abra mais horizontes.
Para escrever esta história contemporânea, precisaríamos ter os próprios poetas como leitores críticos. O poema é um texto aberto à aventura de um possível leitor original. Ele existe em estado de contínua travessia para o outro. Parece-nos que o poema não existe em busca de uma comunidade de leitores. O poeta sim. Este, do ponto de vista da história literária, deseja uma leitura comunitária para se habilitar à canonização. Nada de errado quanto a isso. A formação de cânones literários (claro que sempre desconstrutíveis) é imprescindível à sobrevivência de obras e autores. O que acontece é que toda leitura é pessoal e intransferível. E mais do que a consagração conseguida através do suporte de uma interpretação-guia, o interessante é sempre poder ler um poema que renasce alterado no corpo de um outro poema. A poesia é feita para poetas reais e virtuais. Toda leitura de poemas é igualmente reescritura. Sartre nos disse: "O verso novo que vai nascer é na verdade um verso antigo que quer ressuscitar". Lindolf Bell nos diria: "Existe em nós não o novo/ mas o renascido".
Escrever poesia é ser porta-voz da sensibilidade de época, sensibilidade de geração, sensibilidade de grupo. Precisamos de poetas e de boa poesia hoje, não só em Santa Catarina, mas no Brasil, no mundo globalizado, e precisamos dos poetas que aqui citei e poderia ou deveria ter citado. Leitores-críticos, verdadeiros artistas, que sabem trabalhar não só com furor da imaginação, mas com o que lhe é exterior e com a sua própria subjetividade, produzindo sempre textos "ao lado de". Melhor ainda se encontrássemos sempre poetas críticos neste Brasil de olhos postos nas miragens do primeiro mundo e de pés apressados no rumo da globalização econômico-cultural.
Entre imagens, metáforas, rimas e metros, à poesia não cabe responder coisa alguma, mas cabe a ela mostrar como, em seu esforço de captar o objeto, supera as discrepâncias entre linguagem e realidade. O poema acontece como o quis Carlos Drummond de Andrade: "Nenhum desejo neste domingo/ nenhum problema nesta vida/ O mundo parou de repente/ os homens ficaram calados/ Domingo sem fim nem começo/ A mão que escreve este poema/ não sabe o que está escrevendo/ mas é possível que se soubesse/ nem ligasse.

Tânia Regina Oliveira Ramos é professora do curso de pós-graduação em letras na Universidade Federal de Santa Catarina
Este texto é uma síntese do trabalho produzido para o Encontro Poesia Hoje, promovido pela Fundação Catarinense de Cultura em 1998
[Reproduzido de A Notícia, 23 de julho de 2000]

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